Ciclaveiro
Lisboa, Aveiro e a bicicleta

Lisboa, Aveiro e a bicicleta

Lisboa, Novembro de 1997. Chego à capital por uma razão simples: emprego. Há trabalhos que ainda só se encontram em Lisboa. Acabarei por ficar 10 anos. Bela cidade, cheia de manhas e encantos e muitos, muitos carros, muita poluição. Eu tenho a sorte de trabalhar fora da cidade, nos arredores e morar perto do centro. Portanto, no dia-a-dia faço o trajecto inverso dos milhares que entram diariamente na cidade. Levanto-me pouco antes de ir para o emprego e não passo duas horas por dia no trânsito pendular como a maioria, ou nas filas intermináveis dos transportes públicos sobrelotados. Ao fim da tarde, a mesma coisa mas em sentido inverso. Não apanho filas, ou melhor não sou apanhado nelas; não perco o meu tempo nas viagens. Mas quanto a meio de transporte, estamos entendidos: só me resta uma alternativa (pelo menos é o que penso), usar o carro se não quiser passar duas horas em autocarros, mudar duas vezes de ‘bus’ e ter que andar um quilómetro e meio a pé. Pois, porque trabalhar nos arredores, por muito simpático que seja, tem estes inconvenientes; não se está servido de transportes como no centro urbano. Mas “tá-se bem”.
Certo dia, um colega meu que anda a pedalar por razões estéticas e de saúde, desafia-me a irmos de bicicleta para o trabalho em Alfragide. Enfim, sempre são uns quinze quilómetros pelo percurso acidentado que ele faz habitualmente e vamos chegar lá a transpirar mas é por uma boa causa. Aceito. Tenho uma bicicleta nova em folha e estou habituado a pedalar muito, ao fim de semana (pois, é certo que não é a mesma coisa…). Atravessar Lisboa através do parque de Monsanto não representa grande dificuldade; algumas subidas mais íngremes, umas pistas de terra batida aqui e ali mas tudo pacífico para pessoal com pernas para isso e uma bike adequada. O problema não é o “off-road”, é mesmo a selva urbana. Só para ir do Saldanha até às franjas do parque é preciso coragem e nervos à prova de tudo. Os condutores detestam ciclistas a estorvar o trânsito (como se eles conseguissem andar mais depressa do que nós na cidade) e mostram o seu desagrado das formas mais agressivas. Além disso temos umas subidas para fazer com os carros a roerem-nos os calcanhares e temos o coração a bombar forte enquanto inalamos os gases dos veículos de quatro rodas; repito para mim mesmo que é por uma boa causa mas começo a ter dúvidas. Ao fim dos dois primeiros quilómetros estou farto mas entrar na mata de Monsanto é por fim um alívio. Chego ao trabalho e sinto-me um herói mas vai ser por pouco tempo. O regresso a casa em duas rodas é uma aventura semelhante. Ou antes, é pior porque a essa hora da tarde a atmosfera da cidade, nesse dia de Maio, atingiu já o pico da poluição. Serve de experiência que não se irá repetir. É pena mas…
Quando passo a trabalhar no centro da cidade tudo fica mais fácil, ou é o que parece. Não preciso de transporte para ir trabalhar. Não só poupo tempo mas economizo nos combustíveis e como efeito colateral sinto-me feliz por não ser mais um a contribuir para a poluição da cidade. Mas ela está lá e vou acabar por notar os seus efeitos. Não posso deixar uma janela aberta durante o dia; o cheiro do ‘diesel’ queimado é intenso, a poeira levantada pelos carros é imparável e a casa ressente-se disso. A poluição sonora é tão má ou pior do que a atmosférica; todo o condutor buzina por tudo e por nada; os mais apressadinhos aceleram como se estivessem a tentar chegar em primeiro lugar a algum lado, numa cidade onde ninguém chega depressa a lado algum porque todos estão condenados a estar presos na mesma teia de aranha viária.

Passados mais cinco anos, estava farto de Lisboa. Felizmente tinha a oportunidade de mudar de cidade. Já conhecia Aveiro e sempre gostei da região. A cidade, em termos urbanísticos deixava bastante a desejar mas a sua dimensão, a envolvente paisagística e o custo de vida mais baixo prometiam uma melhor qualidade de vida, além de outros interesses pessoais que agora não vêm a propósito. Mudei-me para a cidade dos canais. Na altura ainda via homens e mulheres mais velhos com cestas instaladas na frente das suas “pasteleiras”, a transportar e distribuir pão no centro da cidade; outros carregavam diferentes mercadorias em precárias caixas amarradas sobre a roda traseira. E havia uma coisa deveras interessante: a bicicleta de utilização gratuita (BUGA), ícone nacional da mobilidade ciclável. Parecia-me na verdade uma zona agradável para usar a bicicleta como único ou principal meio de transporte diário. A partir daí, passei a adoptá-la como o meu veículo de eleição na cidade. Infelizmente, algumas coisas mudaram, aparentemente para pior. Os cidadãos mais velhos que ainda circulavam de bicicleta quando cá cheguei foram desaparecendo das ruas, as vias cicláveis na avenida principal da cidade foram deixando de ser praticáveis, as poucas vias “cicláveis” pintadas nos pavimentos das ruas estavam constantemente ocupadas por automóveis e as BUGAs foram-se degradando até se tornarem quase peças de ferro-velho que só os desprevenidos ou os masoquistas ainda utilizam. Em contrapartida, o automóvel tomou conta da cidade. Naquela avenida onde antes havia uma via ciclável no passeio central, até com semáforos para ciclistas passou a ver-se o estacionamento permanente em segunda fila, as paragens de autocarro ocupadas pelo estacionamento de veículos privados e estacionamentos frequentes em cima das passadeiras para peões. E a “cidade das bicicletas” passou de símbolo daquilo que é uma boa prática de investimento na mobilidade sustentável para ser o exemplo daquilo que pode correr mal quando não há visão, nem rigor, nem coragem.

Os anos passam. Em 2014 volto para Lisboa. Trabalho e vivo ali mais uns anos e começo a aperceber-me de que algo está a mudar. Não ouço falar muito disso, mas vejo os resultados. O estacionamento caótico nos passeios e noutras áreas pedonais passa a ser impossível na maior parte do centro da cidade por uma razão simples, a instalação de pilaretes não deixa margem para veleidades. Há ruas a serem requalificadas; as faixas de trânsito em muitos casos passam a um sentido e fila única, os passeios são alargados, são instaladas vias cicláveis segregadas com pavimento dedicado. Naquelas em que isso é pacífico porque a circulação é forçosamente lenta, a via ciclável é partilhada com o automóvel. Ups! Passa-se aqui qualquer coisa… Ao fim de três anos o centro da cidade começa reflectir a mudança. Primeiro são poucas dezenas, depois centenas, neste momento devem ser milhares os ciclistas que se deslocam em Lisboa. Vêm-se pessoas de todas as condições sociais e faixas etárias, pais a transportar os filhos para a escola, jovens estudantes, enfim, muito dos mesmos que até há pouco recorriam a outros transportes motorizados, públicos ou privados. Sim, as trotinetas também lá estão e coexistem pacificamente com as bicicletas. Pode ainda não ser muito significativo em termos dos seus impactes ambientais, mas é um sinal de mudança no bom sentido e é um investimento no futuro. No fundo é uma mudança de paradigma. E não foi preciso fazer campanhas de sensibilização nem distribuir bicicletas públicas aos cidadãos; bastou criar as infra-estruturas e dar a oportunidade às pessoas de mudarem os seus hábitos. Como dizia o saudoso arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles a propósito das aves aquáticas que habitam os lagos da capital, como aquele ao cimo do Parque Eduardo VII, “não é preciso levar para lá os patos, basta colocar lá a água e eles aparecem”.

Agora voltei para a cidade dos moliceiros. Aqui, água não falta e aves aquáticas também não. Bicicletas é que se vêem poucas, apesar da dita tradição. É preciso recriar as condições, a ver se os “patos” de duas rodas aparecem….

Francisco Curado